Do dar ao ser para os outros
José Dias da Silva, vogal da Comissão Nacional Justiça e Paz
Dar é uma palavra que encerra em si vários significados. Há o dar dinheiro ou bens materiais, a forma mais habitual, a que corresponde a lógica da esmola. Faz-se quase instintivamente. Normalmente, nem conhecemos a pessoa que pede nem se realmente precisa ou não. Alem de que a esmola tem sempre muito de humilhante. Há o dar em caso de uma catástrofe pequena ou grande, próxima e afastada, que decorre da lógica da reciprocidade. Perante uma situação aflitiva, sentimos obrigação de ajudar alguém em necessidade. Talvez seja uma reminiscência profunda da antiquíssima lei da hospitalidade, uma espécie de “lei do talião” positiva: dou-te porque posso também vir a precisar que me dês: do ut des (dou para que me dês) já dizia o aforismo latino. Há o dar os nossos talentos – tempo, atenção ao outro, disponibilidade –, já mais rara e que está na base do voluntariado. Responde à lógica da solidariedade: dou o que tenho de bom para ser útil aos outros, para os ajudar a superar as dificuldades em que se encontram, sejam de ordem material, psicológica ou espiritual. É um dar para que o outro se torne mais pessoa e não apenas menos pobre. Exige muito esforço físico e espiritual, obriga a uma mobilização consistente da inteligência mas também da vontade: a “vontade de fazer (o) bem”. Finalmente temos o dar-se a si mesmo. Entrámos na lógica da gratuidade, do amor, do dom, da graça. Já não é um “interesseiro” do ut des ou um dar para que me “deixes em paz”, mas um dar “de graça”. Aterrámos na lógica do “tudo é graça”, uma exigência a que não podemos fugir porque tudo nos foi dado, gratuitamente e não por mérito nosso. Todos poderão dar assim, especialmente os cristãos, por exigência da sua fé. Não se pode ser cristão se falharmos aqui, porque deixamos de ser seguidores de Jesus Cristo, que se deu a si mesmo até à morte e morte de cruz. O dar “cristão” é o dar-se aos outros, um dar que engloba todas as outras formas de dar, mas que as ultrapassa e purifica: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho isso te dou: em nome de Jesus Cristo Nazareno levanta-te e caminha” (Act 3,6). Uma das frases do Evangelho que mais me fez pensar durante anos vem no Sermão da Montanha: “Se alguém te requisitar para andares uma milha, caminha com ele duas” (Mt 5,41). A explicação, que encontrei, parece-me ilustrar bem o que tenho estado a dizer. Na Antiguidade, como não havia correios, os reis tinham os seus estafetas que podiam requisitar, por lei, qualquer cidadão para os acompanhar durante uma milha. E, depois, iam repetindo as requisições. Neste contexto, o que traz de novo esta passagem evangélica? Se eu for requisitado, sou obrigado, por lei, a andar uma milha. Mas, se verificar que o estafeta não tem ninguém para requisitar ao fim dessa milha, tenho duas hipóteses: ou me venho embora, pois já cumpri a obrigação legal; ou me ofereço para andar outra milha e, assim, entro na ordem da gratuidade. A segunda milha é “de graça” porque a dou voluntariamente: não resulta da exigência legal, mas da lógica do dom. Estamos, pois, no oposto da lógica da reciprocidade, numa espécie de “ética assimétrica” e passamos também da ordem da legalidade para a ordem do amor. Ao colocarmo-nos na ordem do amor, saltamos para a ordem do ser para os outros. O amor ou é egoísta ou é oblativo. O amor egoísta não é amor a sério, é interesse particular, é um fechar-se em si: pertence à lógica de “o problema não é meu”. O amor oblativo dá-se sem mais. Este salto é muito difícil. Mas em vez de desanimar, devemos aceitar que vivemos num mundo imperfeito, onde se entretecem várias formas de amor. Bento XVI, ao reflectir sobre “eros como o amor «mundano» e agape como expressão do amor fundado sobre a fé e por ela plasmado”, demonstra a íntima ligação e reciprocidade, que os une: “Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente, depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais com ele, doar-se-á e desejará «existir para» o outro. Assim se insere nele o momento da agape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza”. Mas, “por outro lado, o homem não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber” (DCE 7). A explicação é fácil. O ser humano é, por definição, um ser social, um ser para os outros. Duplamente o tem de ser o cristão: porque é um ser humano e porque se sente amado gratuitamente por Deus. Contudo, como não somos deuses, precisamos de sentir que o nosso amor não é sistematicamente ignorado: necessitamos de reciprocidade visível, que nos estimule e anime a continuar. Não é só porque somos humanos e limitados, mas porque o amor, sobretudo o amor oblativo, não subsiste se for unilateral. O amor exige amor. Até Jesus sentiu a angústia dessa falta de reciprocidade: “Nem sequer pudeste vigiar uma hora comigo” (Mt 26,40; Mc 14,37). De qualquer modo, esta nossa limitação humana não pode desviar-nos do grande objectivo, que é darmo-nos para podermos “ser para os outros”. O cristão é alguém que tem por modelo Jesus de Nazaré que “passou pelo mundo fazendo o bem”, que se deu e se deu até ao fim para que todos pudessem ser mais pessoa. Nós, que somos chamados a ser as mãos, a boca, a inteligência do nosso Deus, só temos um caminho: darmo-nos ao outro, todo o outro, amando-o como “um que faz parte de mim”, como “um dom para mim” e para o qual devo saber “criar espaço”, “levando os fardos uns dos outros e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos ameaçam e geram competição, arrivismo, suspeitas e ciúmes” (NMI 43). |
Nenhum comentário:
Postar um comentário